Que dia?

Minha criatividade para a escrita lúdica foi passear e até agora não voltou. Preocupada, busquei respostas. Encontrei: “A escrita criativa não depende de inspiração. Ela é um esforço constante, que exige mais disciplina e perseverança do que uma ideia incrível.” É preciso deixar de esperar.

Curvas do amor, ao mar.

O dia amanheceu calmo, claro, com vento suave e macio de mar bom para se ver de perto. Um certo ar de folha molhada passeava, um canto de ave ao longe soava, e um gato, cínico, tal como a sua natureza, esticava-se no telhado, que já lhe parecia atrevidamente familiar. Há lugares bons, como este, em que a leveza se apresenta acordando os sorrisos de forma branda e arredondada pelos afetos de muitos objetos, lembranças e certezas de bem viveres.

Os passos rumo ao mar pareciam inevitáveis e lentos, sem pressa, observando e contando sobre caminhos da vida que não hão de se cobrir com asfaltos ou lamúrias, jamais. Chegando, estava a cena: um caminho que se acaba, um quiosque que se isola, e um único banco, debaixo, que se convida a ser sentado e experimentado como ouvidos, tal como àqueles de jardins imensos, em que o tempo não passa.

O mar estava bonito, sendo pescado por alguns homens esperançosos, ondulando, cheio, com sua maré cantante feito quando ouvida, em concha, feliz. Apreciei, sortuda, cada minuto, história e arremate, a partir de conclusões (im)possíveis. A melhor delas: “o amor faz curvas”. Portanto, sem a linearidade desejada e inexistente.

Pois que o amor se faça curvo, embora quadrado, contanto que não se perca, a não ser que em busca de ser encontrado, e que se amanheça em nós, quando emocionado, inelutável, andante e feliz.

Deixar de carregar.

Agora há pouco assisti a um vídeo, a mim enviado por um colega da faculdade de medicina, sobre a necessidade de esvaziamento de si. Dizia algo como o quanto é necessário ter-se partes vazias, a preencher com novos conhecimentos, e não apenas referidos aos saberes acadêmicos, mas também – e, talvez, sobretudo – aos saberes da existência, da vida comum e bastante carecedora de aprendizados. Dizem que os antigos são humanos conhecedores e, para que esta afirmação se faça verdadeira, não se cogita qualquer condição curricular, mas experiências de vida.

Certamente não exauri as minhas condições curriculares, sequer as minhas experiências de vida. De Todo o modo, de imediato senti necessidade de esvaziar-me, no sentido de “deixar ir” ou “descarregar”, deixar de carregar. Ainda carrego malas e pesos que pensei precisar por muito tempo. Provavelmente precisava, inclusive. Ou até carregava por parecer precisar e isso, por si só, já trazia a sensação de segurança que sentia, por consequência. A verdade é que não preciso mais de muita coisa.

A chuva passou e começou a fazer calor. Não preciso mais das roupas de frio internas nem externas. Não preciso mais de pesos. Posso já me libertar e voar, não vejo mais problema em voar, porque já construí o meu ninho e já tenho para onde voltar. Galhinho por galhinho, fui eu quem colocou ali. O tronco da árvore manteve-se o mesmo, e comum aos meus amores de família. A mesma árvore de minha vida inteira.

Efemeridade que se constitui.

Um dia antes de regressar ao Brasil visitei o Paço dos Duques, em Guimarães, Portugal. E em meio às antiguidades clássicas havia uma exposição de arte contemporânea, que por vezes coexistia, por vezes suplantava o clássico, pousando em sua frente, impedindo a apreciação de ambos ou de um só, para quem queria ver o que há décadas ou séculos se fazia presente.

Receio que nos tenhamos perdido em belezas, antes tão completas e terminadas, delineadas, mergulhando, agora, em recursos inacabados, que têm um “porquê”, mas que não têm o encantamento de uma “beleza que se fotografa em detalhes”. Que se vê em detalhes. Que se faz congelar no tempo com uma unicidade de imagem representando o estudo do que significa o belo ou o feio, não importa.

A lindeza de uma arte antes pensada para durar colidia com uma arte temporária que nos prometia fazer pensar, mas que não se pretendia manter sob a nossa vista, quer seja alegre ou triste. Assim que “desmontada”, vai embora. É de uma efemeridade que se constitui. É montada para se fazer temporária, para incomodar e depois ir embora.

Não gostei de ver a efêmera reflexão suplantando a beleza perene. Fiquei incomodada. Talvez tenha sido esta a intenção do artista. Se fazer perene pelo incômodo que sua arte causou, não pela beleza de sua arte em si, que quase não há.

Lotação de nada em meio a tudo.

O cotidiano termina por engolir nossos momentos de pausas criativas, pensei. No entanto, pensei novamente: talvez sejam os novos e errôneos hábitos que têm incutido, em nossos intervalos entre os afazeres, as ausências de “nadismos”, o que fulmina a criatividade, o descanso, com presenças de superinformações desnecessárias. Em um único dia sou capaz de fazer inúmeras atividades compromissadas, sinceras, difíceis, importantes e, entre elas, inúmeras pequenas atividades que somente causam desconforto intelectual e sensação de mente superlotada de desnecessidades. É que, no cotidiano, estão o que há de melhor e pior em nossas mãos: os smartphones. Mas são meros objetos. Mudem-se os sujeitos.

Um real e cinco centavos 🌷

– “Mãe, qual dos dinheiros você quer? Um ou cinco?”

Pergunta ela com as mãozinhas cerradas e sorriso esperto no rosto e arremata com ar profundo de esperteza:

– “Pode querer os dois!”

Olhei com ternura e pensei: essa menina linda de rosto pequeno me pergunta sobre números, quantidades, não sabendo ela que alegria foi a sua chegada, ao meu lado, e não havia outra resposta senão a que lhe pudesse demonstrar a unicidade de meu bem-querer, pois foi quando respondi:

– “Um!”

E sorri com amor. Ela torceu a boquinha com ar de riso preso e me deu o que tinha em uma das mãozinhas: uma moeda de um real. E perguntou, como quem, sorrindo piedosamente, não queria me ver perder um número de dinheiro que lhe parecesse maior:

– “Você também quer cinco?”

Respondi, com riso resignado, que sim. Ela então me entrega o que tinha em sua outra mãozinha: uma moeda de cinco centavos. Me dá um beijo de ternura e sai, feliz em ter sido tão caridosa e boa comigo. A moeda de cinco centavos lhe parecia mais valiosa, afinal, o número era maior!

Maior é o meu encanto. Cá estou eu, rica, com meu um real e cinco centavos de doçura, depois de um beijinho feliz e sabido daquela menina linda.

Quantas vezes na vida perdemos ou ganhamos beijinhos doces por escolhermos mal as quantidades e valores que temos em nossas mãos? Quais são, na verdade, os nossos encantos queridos? Por que desconfiamos de bem-queres e fazemos joguinhos sem compaixão? Por que desconfiamos e solicitamos às pessoas que façam escolhas sem darmos a elas a oportunidade de recobrar suas ações com o benefício do esclarecimento das dúvidas ou indicações sobre as ações que mais nos parecem fazer bem?

Que esperteza é essa que pensamos ter em escondermos sentimentos puros quando, na verdade, o maior amor está, justamente, em cada decisão de se ternar vulnerável ao próprio amor? Queremos ganhar mais o quê e de quem?

Estou aqui: rica com minhas duas moedas. Desejo, carinhosamente, sempre que a mim for permitido, que cada riqueza próxima me mostre valores que dinheiro nenhum é capaz de alcançar.

Caderno, em voo, para a tese.

Defendo a minha tese de doutorado amanhã. Estou em viagem, no avião, em uma localização não tão desejada, entretanto ainda adorada: sobre as asas. A asa direita. Destra. Quase não há nuvens no céu, apenas pequenas ovelhas, ao longe, como ouvi certa feita de um açoriano ao se referir ao mar. Muitas ondinhas brancas em meio ao mar. Ovelhas ao mar. Há recortes na terra, pedaços de chão que, mecanicamente, são descritos em escrituras imobiliárias, mas que, em verdade, nada mais são que recortes no chão, num chão que a todos e a ninguém pertence. Humanos verdadeiramente acreditam que têm propriedade sobre este chão. Inventaram a posse, o dinheiro, documentos, nada mais que ilusões e papeis, sensações de poder sobre algo que nunca lhes pertenceu. A natureza tem a posse. Inclusive dos humanos. Conseguem torná-la rarefeita. Mas esta se transforma, se reapresenta e descortina a sua força sob a faceta que, em dado momento, puder portar.

A minha tese será apenas mais uma tese. Um pensamento, uma forma de propor uma perspectiva aos humanos que se dispuserem a lê-la. Apenas uma perspectiva, a ser valorada, criticada e absorvida, se for o caso. Fiz com esmero. A sensação é sempre a de que caberiam mais argumentos, mais livros, mais retornos a novos pensamentos não enfrentados. De todo o modo, é bem verdade que a ciência e as produções literárias caminham assim: um faz, outro critica, refaz, e caminha mais um pouco. Espero ter caminhado este pouco, e que novos caminhos sejam caminhados a seguir. Que as críticas existam. São só ideias. Exceto as depreciativas com intencionalidade de não contribuir, sequer aprofundando os porquês da discordância. Não penso em deparar-me com estas. Sigamos. As críticas, as reais, as contributivas, que apontam equívocos e sugerem ricas modificações, são as ovelhas. São os mares pequenamente revoltos, são o céu minuciosamente salteado por ovelhas na vastidão do azul. // 06.04.17

A coragem de pensar é desencorajada por fracos. Não suportam um diálogo diverso de suas perspectivas. Bem vale pensar, refletir o pensamento, buscar eventual fundamento em razões lógicas, buscar sentido junto aos sentidos sociais hegemônicos e contra hegemônicos. O pensamento diverso do habitual é desencorajado inclusive com falsos elogios, que oprimem pela geração de expectativas na fala. É gerada uma super responsabilização pelo que se diz. Diga, mas sustente. Quase ameaça. O natural do pensar é tolhido pelo medo de não se alcançar a sustentação da fala. Não se fala, não se pensa. É quase um risco incorrível. // 06.04.17

O piloto informa a decida. Já tenho minhas dores nos ouvidos. Ainda assim, anseio por voos. O deslocar reloca. Abri a revista de bordo e reforcei esse pensamento. Em uma das publicidades havia a melhor: “Ideias são como fósforos. Só acedem fora da caixa.” // 06.04.17